quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Os portugueses

O segundo divórico da minha sobrinha foi recebido com a mesma indiferença carinhosa com que se soube da notícia do seu segundo casamento. Os Homem nunca foram muito dados a escandalizar-se e, salvo erro, a última vez que o velho doutor Homem (meu pai) enrubesceu de indignação moral ocorreu quando chegaram à casa do Porto, numa revista da época, as fotografias em que o doutor Salazar olhava, com uma concuspicência sem veneno (o que era pior), as suavíssimas pernas de Christiane Garnier. A sua indignação era mais dirigida contra a jornalista do que contra o antigo seminarista(…)

Uma das minhas irmãs perguntou onde ela tinha casado. A sobrinha respondeu, com naturalidade, que “no Rio de Janeiro”. “E com um brasileiro?”, voltou ela. “Antes fosse”, murmurou o meu irmão mais velho, pai de Maria Luísa, “mas foi com um português, desses daí.”
A expressão “um português, desses daí” não foi muito comovente, mas dá uma ideia de como as coisas estão hoje em dia.

Frequentemente ouço falar dos “portugueses”. Antigamente, eu sabia a quem se referiam – havia uma série de “portugueses” que se poderiam enumerar, de Gonçalo Mendes da Maia a Mouzinho, dos camponeses do Minho aos primeiros colonos do Ilinóis. O tempo tinha descido sobre eles e conferia-lhes aquele halo dos retratos cobertos de poeira que anula as imperfeições e realça as melhores cores. Hoje em dia, isso não tem a menor importância. “Um português, desses daí” significa, realmente, um homem vulgar, capaz de discutir futebol e de identificar as pessoas da televisão. Não há portugueses, propriamente ditos; há uma série de pessoas que vive em Portugal.

Se os meus leitores esperam que eu chore e mencione coisas como “portugueses de antigamente”, eu desiludo-os: acho natural: os “portugueses de antigamente” tinham vícios muito contemporâneos e eram tão velhacos e impertinentes como os de hoje. Por isso, quando ouço falar dos “portugueses” (como na recente campanha eleitoral), duvido bastante das intenções do orador. O que era bom, nas pessoas que vivem em Portugal, era que fossem decentes, que morressem suavemente e vivessem com dignidade. Quando as alegrias do futebol ou as conivências da política levam “os portugueses” a pendurar bandeiras nas janelas e a gritar o nome da pátria, isso parece fazer esquecer todas as pequenas misérias, o lixo à beira das estradas ou a maneira como os velhos do meu país morrem abandonados e doentes. Quando as bandeiras se recolhem, as coisas voltam ao que eram. Eu preferia que houvesse menos bandeiras e mais gente a esforçar-se por acordar cedo, por ser razoável ou por aprender as minudências da matemática, essa ciência moderna. Razão por que Portugal precisa menos de portugueses do que de paciência e aplicação.

António Sousa Homem
in Notícias Sábado, 28 Janeiro 2006