quinta-feira, abril 20, 2006

As baldas dos nossos deputados I

Sejamos sinceros. Ninguém no seu juízo perfeito, nem mesmo a mais púdica alma do nosso país, pensa que os nossos deputados e políticos são anjos ou meninos de coro. Nem eles, nem quase ninguém. Deixo o “quase” para salvaguardar as excepções que confirmam a regra. No entanto, de tempos a tempos, somos confrontados com detalhes que nos passam, normalmente, despercebidos. Seja porque estamos desatentos, seja porque nunca nos demos sequer ao trabalho de pensar ou investigar o assunto.

A falta de quórum no Parlamento que impediu, na passada semana, a votação de uma série de leis e a consequente mediatização do assunto pela imprensa nacional, pôs a descoberto algumas características mais escondidas da vida parlamentar, assim como a visão e o senso de responsabilidade que alguns dos nossos deputados têm sobre a sua própria função política.

Neste e no próximos post um resumo do que me chamou a atenção.

O actual regime de faltas dos deputados remete para o Estatuto dos Deputados os motivos de justificação aceites, mas estipula que "a palavra do deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais".

O diploma retira ao Parlamento poderes de verificação das justificações apresentadas mas refere, como excepção, que "quando for invocado o motivo de doença, porém, poderá ser exigido atestado médico, caso a situação se prolongue por mais de uma semana".

O Estatuto dos Deputados considera "motivo justificado [para a falta] a doença, o casamento, a maternidade e a paternidade, o luto, missão ou trabalho parlamentar e o trabalho político ou do partido a que o deputado pertence".

O mesmo estatuto admite que "as dificuldades de transporte" podem ser consideradas e que "poderá ainda considerar-se motivo justificado a participação, autorizada nos termos regimentais, em reuniões de organismos internacionais".

Ficamos também a saber que "o regimento admite que haja contagens a todo o momento e só explicitamente diz que há falta quando não há quórum".

Ou seja, os senhores deputados são pessoas honradas, cuja palavra deve ser aceite como verdade absoluta, não sendo para isso necessário qualquer tipo de justificativo, com excepção de estarem doentes. Não é que se duvide da sua justificação, é apenas uma preocupação do Parlamento para com o seu estado de saúde e para se certificar que o senhor deputado está a ser bem atendido pelo SNS.

O excelsso e honrado deputado não mente pelo que ninguém vai suspeitar se disser que esteve em trabalho político analisando as condições dos habitantes da “Alta de Lisboa” ou do “Parque das Nações”. Nem tão pouco, se der a justificação de estar a reforçar as relações diplomáticas entre Portugal e a República Dominicana. Ou as Seychelles.

No caso concreto da passada quarta-feira, em que assinaram o ponto mas não chegaram a sentar o seu honrado traseiro no Parlamento, imagino que a justificação tenha sido “a dificuldade de transporte”. Seguramente que o honesto e educado deputado, ao ver o sinal de piso escorragadio após limparem os corredores do Parlamento, se sentiu na obrigação de não pisar e sujar a mármore húmida. Quando finalmente o chão secou, a votação já tinha sido cancelada. Longe de nós pensar que o humilde deputado teve “a lata” de assinar o livro de ponto e depois faltar aos trabalhos parlamentares.